sábado, dezembro 19, 2009

digo que

quanto mais se escreve mais estranho fica

terça-feira, dezembro 08, 2009

"meu corpo, esse papel, esse fogo", essa água.

hoje choveu de novo. mas eu não estava em neves. choveu muito, mas era no meu sonho. e sandman não apareceu. estava só, com a água tocando meu rosto. e subitamente o mundo se encheu de vidas. me vi envolto a inúmeras árvores. fui trilhando um caminho que me conduziu à uma casa de campo. daqueles pequenos palacetes monumentais no meio de uma campanha. aproximei e entrei. no meio da casa estava lá, um homem sentado com seu robe de chambre, seu papel na mão e o fogo da lareira movimentando seu sangue, meditando. percebi que havia me envolvido no jogo dos limiares da razão e desrazão. camus lá apareceu e cuspiu no papel daquele homem esquálido. e segurou-o pela gola, dizendo que não tinha nada em suas mãos. logo vi que o jogo se complicara e que o real se confundia com o sonho, justamente através da dinâmica do absurdo. não quis jogar o jogo e logo percebi que um queria desautorizar o outro. mas foi em vão perceber isso. camus não queria desautorizá-lo. ele simplesmente o fez. sua intenção era ser a própria normalidade de sua existência. vi xamãs, filósofos, clérigos, ateus e cientistas. todos em busca da resposta à mesma pergunta: 'qual o sentido?' e todas as respostas eram iguais. todos estavam lidando com a mesma vontade de existir. e pensei o quanto era estúpida essa pergunta que vem conduzindo esses seres mutantes que se denominam humanos, já milênios. estava cansado e vi Sócrates sorrindo no mesmo instante que uma pedra acertou seu olho. seu sorriso de monalisa estava lá e davinci piscou pra mim antes de sumir. tudo estava ficando claro quando alcibiades me disse que sócrates queria homenagear as mulheres que foram apedrejadas sorrindo e gargalhando. disse indignado à alcibiades que sócrates havia tomado veneno. ele me olhou advertindo que isso era o que estava nos registros escritos. disse e partiu em busca de si próprio para governar a cidade. olhei para o lado e virgínia com seu ar sério parecia compreender tudo e me disse que eu já sabia de tudo mas não conseguia aceitar que sabia. ela correu para o rio ouse e não mais a vi por ali. o homem do robe de chambre estava lá ainda e havia outros seres com ele, fazendo fila para duelar pela subjetividade moderna. lembrei que a pergunta era estúpida! e a seriedade de virgínia voltou a aparecer pra mim. compreendi que não queria compreender nada disso. beijei o homem de robe de chambre escrevi alguma coisa em suas folhas de anotações. ele não conseguiu ler, não fora educado para compreender o que estava ali. entrei na lareira e meu corpo, esse papel, voltou a ser fogo. descartes olhou para a folha rasurada e a atirou à lareira. mas o papel ficou ali. e ainda era possível ler claramente a pequena frase, que fez alguns digladiadores sorrirem: "não caiam de amores pelo poder". eles deram as costas para descartes e sairam. a água do ouse encontrou-me na lareira envolvendo tudo que existia. de repente era só água. e a chuva continuava caindo.

quarta-feira, novembro 25, 2009

observação - gostaria de lembrar que, neste instante, existem centenas de milhares de pessoas no mundo inteiro

Aos observadores de Belo Horizonte, Wayne, Minde, Châtelet, Antony, São Paulo, Évora, Mantena, Campinas, Bauru, Rio de Janeiro, Juiz de Fora, São Leopoldo, Ribeirão das Neves, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Loures, Mountain View, Cuiabá, Chapecó, Blumenau, Brasília, São Luís, Suzano, Iúna, Contagem, Castelo, Garibaldi, Sabará, Lisboa, Nova Lima, Tokyo, Londrina, Ouro Preto, Santos, Amadora, Monção, Caxias do Sul, Valongo, Várzea Grande, Ourinhos, Macapá, Álvaro, Sete Lagoas, Salvador, Joinville, Betim, Belém, Cascavel, Santo André, Natal, Petrópolis, Campina Grande, Remígio, Viana do Castelo, Uberlândia, Ponte de Lima, Dourados, Gravataí, Guairacá, Presidente Olegário, Teresina, Rio Grande, Niterói, Três Rios, Pirassununga, Guarulhos, Pojuca, Florianópolis, Lajeado, Entre Rios, Santa Bárbara, Santa Cruz, São Bernardo do Campo, Belford Roxo, Sapucaia, Campo Grande, Guarapuava, Olinda, Maputo, Itabuna, Boa Vista, Berlim, Marília, Patos de Minas, Vespasiano, Bern, Vila Nova de Gaia, Bologna, Bom Jardim, Taboão da Serra, Divinópolis, San Diego, Três Corações, Porto, Flores da Cunha, São Lourenço, London, Osasco, Paranacity e Ribeirão Preto: obrigado por terem nascido.

sexta-feira, novembro 06, 2009

protoquixote na metrópole

é engraçado... ver aquele menino frágil encarando o mundo. é engraçado. quando sai cedo de casa com poucos dinheiros no bolso e volta tarde com muitas dores e fadigas, dorme até às oito do dia seguinte, perdendo um dos compromissos semanais. ele fica atordoado. com a cabeça cheia de redemoinhos. custa a entender o que está fazendo no momento em que acorda. se ele toma o café quente, vem a vontade e logo libera o pouco do bolo que seu corpo faz para boiar nos rios mundo afora. mas nada é tão certo, nada está numa ordem padrão e prontamente verificável. a cada dormida é um pedaço de sua memória que quer morrer. e se não há luta, se ele não levanta e começa o dia, a maioria morre. claro que a maioria já morre normalmente. mas aquelas que sempre nos acompanham diariamente se perdem facilmente quando ele fica ali, preso em si mesmo, vivendo em suas fantasias. o fato dele começar o dia faz com que ele entre em contato de novo com o mundo, com as coisas que ele já viu, ja fez, e assim, as memórias vão voltando e chegam a formar um êxtase mimético-temporal no fim do dia... mas aí já é tarde demais e ele quer dormir, de novo. ele já pensou em gravar 24 horas de sua vida e depois editar, mas concluiu que não daria tempo de editar... o tempo é a criança que brinca no quintal, modificando-o. o quintal é a memória que também modifica a criança, inscrevendo-se no tempo. o quintal e a criança daquele menino sofre violentas modificações diárias. no fim, acaba que eles ficam muito parecidos do que eram no começo do dia, mas o processo de transformação não pode ser ignorado. ele parece mudar para permanecer o mesmo. quanta violência ele produz em si mesmo. parece que ele poderia explodir sua própria cabeça com esses movimentos de transformação. e talvez por isso o garoto fique tão cansado. com tanta informação para "processar", seu quintal, por vezes, fica parecendo um ferro velho com montanhas de crianças sobrepostas. talvez ele precisa de um empurrãozinho, de alguém que lhe mostre outras possibilidades de tratamento das informações. ao invés de processar, talvez ele precise dar vazão às informações de acordo com seus sentimentos. ora, ele não percebe, ainda, que o que importa das coisas é o que elas fazem em nós mesmos e o que fazemos nelas, com elas. se as informações nos tocam, nos misturamos a elas, nos encontramos e nos transformamos. se não nos tocam, deixamos que passem, que continuem sua jornada. mas ele não sabe isso. ele sabe outras coisas. ele sabe que se ele deixar passar uma informação sequer, ele irá sofrer muito por isso. porque ele sabe que as informações fazem parte dele e ele delas. mas isso o deixa nesse impasse atordoante. mas isso não é triste. isso é engraçado...

domingo, setembro 20, 2009

comunicação e imagens

eduardo saía cedo de casa e tomava seu café na mesma lanchonete até ter sentado em todas as cadeiras do local. quando ele certificava-se que já havia deixado sua marca em todas as cadeiras, era chegada a hora de mudar de local para fazer o desjejum. no café do zé, ele conseguiu circular nas 270 cadeiras, o equivalente a nove meses de cafés. eduardo encontrou carlinhos em apuros. em desespero carlinhos veio até dudu pedindo auxílio. eles entraram no café do zé e começaram a dialogar sobre a saga de carlinhos.

- eu te disse, cara, que tinha conhecido uma pessoa... ela chamava-se bertoldo.
- sim, carlos, vc havia me dito.
- pois é, bicho... esse cara era muito estranho... o pessoal chamava ele de ed. não entendia o porque...
- talvez seja o sobrenome... ou o segundo nome do cara...
- não! escuta essa história: bertoldo era uma pessoa sempre atenciosa, cheia de sorrisos. mas comigo, ele se abria... falava de seus desejos e sonhos, seus medos e frustrações. sempre achei que ele era uma pessoa comum, como todos. cheia de problemas psicológicos e cheia de felicidades extasiantes, fugazes e capazes de nos iludir com a idéia de um futuro sereno e sempre melhor que hoje. acontece que bertoldo não parecia ele mesmo quando eu o via com as outras pessoas. ocorreu, em um restaurante que ele costumava frequentar, uma coisa muito bizarra. no final do nosso jantar. uma pessoa se aproximou pedindo para tirar foto com ele, chamando-o de eddie murphy, dizendo que amava seu trabalho. bertoldo, sempre muito amável, sorriu e gargalhou exatamente como o eddie. nesse momento eu passei a entender que era de eddie e não ed que as pessoas o chamavam. enfim, ele sorriu, com aquele bigodinho todo cortado à la um tira da pesada, fez uma piadinha infame, como o próprio murphy, assinou uma camisa e um boné para o senhor, despediu-se e voltou para a mesa!
- o que tem demais nisso, carlin?
- pô edu, deixe-me terminar...
- ok.!
- bom, o cara olhou para mim e... PORRA! ele não era nada parecido com eddie murphy. eu virei para ele e disse: "diz aí bertoldo, porque eles acham que você é o eddie murphy?" ele me respondeu que ele era muito parecido com ele. e que não gostava de decepcionar as pessoas que os confundiam. repeti a pergunta: "mas, porra! tu não tem nada a ver com ele, cara! e não é só porque vc é branquelão, não! tu parece mais a meryl streep do que o eddie." eu te digo, o cara ferveu...

(no mesmo instante em que carlos proferiu aquelas palavras, o cérebro de bertoldo liberou, em questão de milésimos de segundos diversos tipos de substâncias, que deixaram a corrente sanguínea mais agitada. a primeira leva que chegou ao coração fez este músculo vibrar com uma intensidade tamanha, que o sangue bombeado começou a vaporizar. em menos de meio segundo todo o sangue já se encontrava em pleno estado de ebulição. retornando em seguida ao cérebro, que em um lance de lince enviou um comando ao seu punho fechado, que avançou violentamente no espaço, provocando grande turbilhão de ar por onde passava. seu punho passou como um cartucho rente à orelha de carlinhos, acertando a mesa em que estavam.)

- o cara me socou! mas eu desviei...

(carlinhos observou a face de bertoldo, que em menos de um segundo passou de alva para pimentão vermelho, progressivamente. foi possível observar o sangue de bertoldo circulando entre seus olhos, fazendo vibrar suas veias oculares. observando o belo conjunto da transformação da raiva em seu corpo, de sinapses ao impulso que o cotovelo dá ao punho, carlinhos percebeu que era o momento de agir. deslocando seu corpo mirrado cerca de alguns milímetros para sua esquerda, conseguiu escapar de um algo que poderia ser um longo desvio da sua rotina.)

- perguntei se ele tinha achado ruim compará-lo a uma mulher e a resposta foi negativa. mas naquele momento, ainda não conhecia a história obscura desse desfortunado. ele disse-me que era obrigado a ser o que as pessoas quisessem que ele fosse... e que não gostava quando as pessoas inventavam mais uma identidade para ele... a partir daquele instante ele passaria a ser meryl streep diante de mim.
- pô, carlinhos. até que a meryl não é uma má companhia!
- sim! mas isto não está em questão. escute! o cara ficou cada vez mais parecido com a meryl e até fez aquele olhar dela ao terminar uma taça de vinho branco. eu gelei, cara. pensei que estava ficando um tanto alterado: “poderia ser o álcool”, imaginei já ansioso. e não é que o cara passou a ser, a se comportar como a meryl desde então?
- é carlinhos, você finalmente está enfrentando isso!...
- isso o que, dudu?
- pô, carlinhos! ainda não sacou?
- eduardo, tu tá me fritando já! conta logo, pô!
- carlinhos, pense um pouco. olhe ao seu redor...

e então carlinhos se virou e percebeu o óbvio! que as pessoas se comportavam a partir das expectativas de seus parceiros. a cena era absurda. ele conhecia algumas pessoas do café, e viu que essas pessoas se comportavam exatamente como ele as imaginava sempre que estavam perto dele. outras pessoas comportavam-se de forma distinta da que ele designava à elas, mesmo assim elas continuavam parecidas com a idéia que ele tinha delas. carlinhos ficou desconcertado e começou a compreender. olhou para o zé e percebeu que ele estava catando comida do chão e recolocando num prato de um cliente, exatamente como ele o pintara em sua galeria de percepções. eduardo continuava sério e austero – ele sempre fora assim diante de carlinhos.

- olha carlinhos, as pessoas são o que são a partir de todo uma complexa rede de percepção e criação imaginativa, simbólica e lógica que realizamos quando entramos em contato com diferentes pontos que ajudam a compor essa rede. você possui centenas de juízos de valores e os conjuga quando conhece alguém, formando uma imagem daquele novo conhecido. essa imagem vai se construindo ao longo da relação e, geralmente, privilegiamos os juízos que mais nos impactaram. com isso percebemos mais as características que nos interessa, compreende?
- poxa dudu, sempre te achei inteligente, sério e austero.

eduardo sempre tinha notado que carlinhos era um babaca e um tanto quanto idiota, ou submisso. irritado, ele olhou no relógio (afinal ele era um homem sério, diante de carlinhos) levantou-se e pediu desculpas mas teria de deixá-lo por estar atrasado. carlinhos, pediu desculpas por tanto incômodo, disse que pagaria aquele desjejum. ao fim, convidou dudu para juntar-se a ele em sua casa no fim de semana, como sinal de desculpas sinceras. eduardo balançou a cabeça levemente para baixo, confirmando, indo-se logo depois. carlinhos ficou ali, esperando bertoldo chegar e lançar seu olhar de meryl streep.

segunda-feira, agosto 03, 2009

crônica de BH ou reflexão ética do meu cotidiano na sociedade dos automóveis

aos leitores ávidos deste blog, peço desculpas pela pequena pausa de dois dias. mas aqui estou de volta para mostrar à vocês, não minha escrita magnífica, não minhas idéias estupendas, nem minhas teses sublimes, mas sim o que vocês leitores querem: o reconhecimento de uma coletividade. eis que aqui estou a escrever sobre a crônica cotidiânica nesta cidade galvânica. cidade que me fez descer do ônibus e olhar para um aparelho de som antigo com toca disco – hoje, falar da tecnologia de meados da década de 1990 é falar de antigo. achei o som caro, apesar de não estar caro. interessante é que não comprei o aparelho, mas, nas duas últimas semanas gastei quase metade do preço do som em livros. talvez seja a hora de parar de gastar em livros e passar a gastar em música, mas os aparelhos de tocar disco ficaram muito caros! os vendedores conhecem os cidadãos modernos que esta cidade possui e sabe que os modernos gostam mesmo é de vinil. não comprei o som e continuo sem escutar meus LP's. cRássicos como Brasil do RDP e a coletânea Plunct, Plact Zuuum. de Van Halen aos Trapalhões. de Mukeka di Rato ao metal dos anos 80. todos estão ali, no canto direito superior da minha estante, esperando pelo júbilo da próxima rotação. cidade que me faz lutar com os veículos motorizados durante minhas caminhadas, e me faz andar meros 30 minutos, de ônibus, da minha casa à universidade. um belo exemplo do progresso! progresso, esse, que faz propaganda das melhorias da avenida com a foto de uma criança. um belo exemplo de pedofilia institucional. um belo circo dos horrores: onde se divertem 'trabalhadores' e 'vagabundos' vendo máquinas atuarem nesse belo enredo chamado modernidade. máquinas dirigidas por seres humanos, claro. mas no espetáculo, é a máquina que toma a cena: cortando árvores centenárias e arquiteturas menos importantes. no final do espetáculo a cena é tomada pelo joão-bobo da vez, abraçando idosas felizes e beijando crianças catarrentas. os antigos gostam de beijos dos senhores taumaturgos, com cara de palhaço, e os modernos sabem disso, levando o pogResso para o povo. cidade que me faz ficar com medo de uma tosse, mas ao mesmo tempo tranquilo, já que o calor não propicia a disseminação do vírus de forma tão avassaladora: mas morre-se de gripe, afinal! seja suína ou do porco humano. os modernos gostam mesmo é de se comunicar e a onda forte dessa praia é fazer do mundo um imenso caos, que precisa da modernidade para se salvar. cidade que me fez amar e odiar, desejar e sexualizar situações, que me fez perceber o corpo e o prazer. o corpo como não lugar, o utópico, como um lugar ainda por se escrever e, mesmo com o biopoder, um espaço aberto para a fazer da vida uma obra de arte. o prazer como balizador do exercício ético da minha existência. os modernos gostam mais é de achar que são reprimidos, mas são mesmos é produtores de inúmeros plásticos e produtos virtuais, criados graças ao silício, capazes de satisfazer suas supostas fantasias reprimidas. eis que, mesmo que os leitores sequiosos não tenham sentido empatia, ou identificado nenhum traço de coletividade – e talvez por isso mesmo – termino esta crônica cotidiânica com a sensação de ter contribuído com meu desenvolvimento interior: o que poderá transformar minha relação com vocês, meus caros e infindáveis leitores. E, ainda, com a alegria de poder contribuir com uma hipótese do Pedro, que inspirou-me ultimamente: o alfredinho tava mais preocupado em construir um projeto para a nação, e construí-la, consequentemente, do que em falar a verdadeira verdade sobre BH - a verdade, e a luta por torná-la verdade, seria um mero artifício para construir (um)a república, a república dos bruzundangas, talvez.

quarta-feira, julho 08, 2009

do escrito - 08/07/09

se borges disse que deveria ter escrito mais, eu preciso dizer que eu preciso escrever. essa atividade estranha que consome energias dos dedos nas pequenas teclas, dos olhos frente à tela branca, do cérebro e suas orientações. corpo e alma, juntos como sempre, numa luta para fazer crescer algumas linhas, alguns resquícios de pensamento, sempre mais velozes que os dedos. a tendência é aproximar as velocidades, mas isso não acontece. escrever é um ato coletivo: uma vez que nunca estamos sós no mundo, ao escrever estamos dialogando com partes desse mundo, mesmo que essa parte seja integrante de nós mesmos. isso não leva a concluir que estamos criando uma única e universal obra coletiva, absolutamente. mas que nossa percepção é relacional, que nossas ações são relacionais, que nada se cria sem referência. o que não quer dizer, tampouco, que não criamos coisas novas. mas sim que o novo não é uma coisa sagrada e tão melhor que aquilo que já existe, e, no caminho inverso, que o existente não é tão importante assim a ponto de ter necessariamente que continuar a existir. que essas criações são autônomas, mas também coletivas. que a ação do autor se exerce num emaranhado de outras ações - pessoais e coletivas. na tela branca, sinônimo, ao mesmo tempo, de limitações e infinitas possibilidades, o autor desenvolve um ambíguo produto: da mesma forma que constrói um diálogo, o autor escreve um monólogo. é uma conversa consigo mesmo.

quarta-feira, abril 29, 2009

de pensações

às vezes arrumo uma pensação longa e dolorida. que fica aqui transitando por entre diferentes axônios e dentritos. velejando de sinapse em sinapse por todo meu corpo fazendo-me ora sentir dor, ora sono. por vezes ela esmaga, comprime a massa cinzenta, o que me deixa atordoado. é tanta pressão que o olho parece que vai pular pra fora. chega a ser engraçado a percepção de tal fato. engraçado e triste. mas o tomo como provocações. tal como as que costumo fazer. aliás, o que venho fazendo é provocar a mim mesmo. ou antes, meu corpo, ou minha matéria completa: corpo e alma. ambos, desde o início, criaram-se, estimularam-se, reformularam-se, cortaram-se, fundiram-se e se fizeram crescer. claro que não na nessa ordem, terminando numa espécie de topo ou fim da linha. a relação entre um e outro é bem mais dinâmica. diria que quase como que irmãos siameses capazes de se desenvolver autonomamente, diferentemente, mas sempre conectados, de alguma forma - qualquer que seja - sempre juntos, influenciando-se. mas mais do que serem siameses, corpo e alma tornaram-se siameses. em determinado ponto do desenvolvimento moral ambos tomaram forma, fundiram-se e tornaram-se irmãos. antes, talvez, o que existira era um monte de massa amorfa em movimento. o fato é, que além de serem siameses - que é uma definição porca, mas o mais próximo do que ora apresento - corpo e alma são relações de mutualismo, predatismo, parasitismo, colonialismo, comensalismo, amensalismo, sinfilia e canibalismo. relações complexas de níveis vários que interagem entre si. e como disse, venho provocando tudo isso: corpo e alma provocando corpo e alma. tudo transforma-se em uma arena de tolos, onde fascismos digladiam entre si, cortando suas cabeças e as dos libertarismos. uma peça de teatro onde sonhos se realizam, se concretizam. como uma sala de cinema onde risos gargalham a morte de 'zés' e choram a morte de cães. uma completa balbúrdia bem ordenada. quase sempre as polaridades ficam evidentes, vez ou outra a coisa explode e todo o campo magnético torna-se neutro por instantes seculares. quando percebo que a pensação dói demais, e que não dá para ficar na cama, estimulo as positividades e as negatividades, com intuito de construir algo - lembrando que a desconstrução é uma forma de construir - libertador, construir outras fronteiras. corpo e alma perguntam-se: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? o que queremos para nós? numa tentativa de sair do isolacionismo cotidiano, corpo e alma procuram inserir tais questionamentos para o âmbito do coletivo. o que estamos ajudando a fazer do(s) que está(ão) ao nosso redor? ambos buscam, em pequenos atos, caminhos possíveis para re-sentir os benefícios de uma outra pensação, profunda, mas leve e serena. e que pode ser longa, se a matéria completa sempre for capaz de voltar a si mesma propondo-se re-formular esses problemas. abrindo-se para a dor, aprendendo a dialogar com ela, estabelecendo uma relação de força na qual ela não pode sair vitoriosa sob pretexto de redenção do corpo e alma. pois se assim for, as embarcações da pensação longa e dolorida irão tomar como posse corpo e alma por inteiro, e isso não pode ser aceitável.

quinta-feira, abril 09, 2009

de tempestades e clarões

uma tarde comum. ela adentrara a mata ainda existente em meio aos prédios escolares do pequeno campus universitário, como usualmente fazia. cortar caminho, por vezes, é mais interessante. ainda mais quando o atalho é constituído por sombras de árvores e por cheiros de ares não-urbanos. o dia brilhava. mas haviam nuvens cinzas querendo compartilhar os espaços disponíveis naquela região atmosférica. elas concentravam-se logo atrás da mata. articulando-se. dialogando sobre a melhor hora de esvaziarem-se. o debate aberto entre iguais logo virou uma ensurdecedora campanha eleitoral. cada hora uma falava mais alto que a outra. e tão logo isso aconteceu, duas grandes nuvens, para se fazerem ouvir, invocaram os maiores acessores daquele tempo: os ventos. de um lado havia um vento defendendo a calmaria e a dispersão no espaço de todas as nuvens, multiplicando as possibilidades de uma maior distribuição do espaço supralunar: questão de dissolução de fronteiras. de outro a defesa era de uma rápida mobilização e concentração de forças para melhor conquistar o pequeno espaço em disputa. as pequenas nuvens se associariam às grandes formando uma imensa e única massa capaz de dominar toda a região: questão de fortalecimento das fronteiras.

ao entrar na mata essas contendas começaram a dar as caras. e a força bruta havia acabado de ser utilizada. a mudança foi rápida e brusca. ela já estava dentro da mata e a chuva desabou sobre as árvores que lhe davam sombra. apressou o passo. começou a correr. mais adiante um raio surgiu clareando tudo em sua volta. de forma que nada mais podia ver. ela caiu. estava sem sentidos. ao se levantar a chuva já havia ido embora. mas deixou suas marcas no solo. seguiu adiante, acreditando já ter perdido seus compromissos. caminhou sempre em frente. cinco minutos se passaram e percebeu que havia algo errado. o caminho não acabava. e nada lhe parecia mais como antes. correu. sempre nos limites do caminho. mas de nada adiantava. ela sentia-se vigiada. percebeu que outros seres também corriam paralelamente à sua linha de corrida. de repente escorregou e desceu barranco abaixo.

sua queda espantou um grupo de amigos que se concentravam ao redor de um banquete. as pessoas voltaram curiosas para ver aquele corpo caído. gritaram ao se olharem! mais correria. agora dispersa e sem direção predeterminada. o tropeço veio rápido. ela não estava acostumada a correr em matas fechadas. pensou consigo que estava ficando louca. "o que tem demais encontrar um bando de jovens estranhamente vestidos, fazendo um pic nic? eles deviam estar bolando algum, ou coisa parecida". riu de si. levantou e tentou encontrar a antiga trilha.
algum tempo depois ela cansou-se e sentou sua bunda num galho caído. mas alguém a havia seguido. tentou uma aproximação amigável. ela se armou! a comunicação foi difícil! os dois ficavam grunindo palavras incompreensíveis um para o outro. acabaram por manter uma relação por gestos. demorou muito para que esses gestos fizessem um mínimo de sentido. se ela não percebesse na face do outro que sua vontade era um diálogo, dificilmente as coisas se dariam como se deram. ambos acharam muito estranho encontrar com uma pessoa de outra língua. logo ali, perto de suas atividades cotidianas. "deve ser visitante de outro país", pensaram. mas logo ela percebeu que estava em outro lugar. que a mata era maior do que o normal, e que não era possível encontrar todos os aparatos técnicos da comunidade de seu novo interlocutor tão porto do campus. não sabia se estava sonhando, se havia enlouquecido, se havia dormido tanto a ponto de não ver o tempo passar, ou se o passado viera até ela e a tinha engolido, envolvendo-a em sua totatlidade.

reconhecendo certos sinais, acreditou ainda estar em um espaço de tempo relativamente perto de sua vida pré-tempestade. mas ficou intrigada pois não via carros destruídos, ou prédios altos. tampouco uma organização comparada às sociedades que já estudara. nunca tinha ouvido falar sobre alguma sociedade em que a coletividade e a individualidade andavam lado a lado. em que as decisões eram tomadas em conjunto e por quem quisesse tomar parte na grande assembléia que se dispunha a resolver seus problemas. ela chegou a falar certos conceitos que tinha conhecimento, mas nada conseguiu tirar das reações dos seus novos companheiros. a organização espacial daquela sociedade era algo que nunca havia pensado. haviam famílias enormes, mas cujo papel centralizador não era o pai ou a mãe, mas a própria solidariedade. a produção alimentícia era coletiva e tomava uma hora diária de cada um. mas esse "tempo de horas" não existia por lá. o tempo era medido sob outra lógica. existia o tempo de trabalho: contado pelo cansaço, suor e necessidade. o cálculo dessas três variáveis geralmente correspondia a uma hora diária do tempo pré-tempestade. as outras partes dos dias e noites eram aproveitadas pela livre vontade de criação: as pessoas expressavam seus sentimentos e desejos com esculturas, música, poesias e outras escrituras. os problemas de ordem organizacional tinham sua vez em reuniões para resolver contendas como: conflitos, escassez de comida, de material de sociabilidade, de utilização do espaço (que era sempre público, nunca privado. o que quer dizer que não pertencia nem a um estado, nem a qualquer pessoa comum). a festa era uma prática cotidiana. por isso a produção de pratos e bebidas tomavam sempre um tempo maior e mais coletivo. o revezamento no fogão era constante. assim, todos brincavam e produziam materiais para a brincadeira.

sua chegada, apesar de levantar uma pequena crise sobre a organização interna, foi vista com bons olhos. os participantes da assembléia se viram na necessidade de realizar uma reflexão sobre a questão da comunicação entre diferentes línguas, mas nada que não tenha sido rapidamente colocado em prática. as crises eram frequentes e as soluções, sempre sensatas e sugeridas no seio do debate, eram logo colocadas em prática. assim, ela foi acolhida com alegria e solidariedade. convidaram-na para participar da preparação da festa noturna: colheita de hortaliças, fermentação do álcool e invenção de danças e performances corporais.

ela ficou maravilhada! acabou entrando em transe durante a festa. nunca havia sentido tanta felicidade, tanto prazer, tanto êxtase em um só momento. seu corpo estava lado a lado de sua alma. e nada parecia tão real e tão mágico ao mesmo tempo. a produção de algo tão prazeroso a fez sentir que aquela sociedade buscava colocar em prática a vida plena da alma e do corpo. ela, então, caiu num amontoado macio de pano que era usado para os repousos. de olhos fechados ainda podia sentir os ritmos dos prazeres da festa. acordou com uma chuva que caia calmamente, mas firme. levantou-se e se percebeu no mesmo caminho que usava para atravessar a mata. levantou-se e compreendeu que estivera ali desde o momento do clarão. olhou ao seu redor e percebeu que havia uma árvore de porte médio com vestígios de fogo. "havia sonhado", pensou. seguiu até o fim da trilha, olhou para trás e sentiu um aperto e seu peito. angustiada, colocou a mão em seu colo e sentiu um pingente, que antes não existia ali. olhou-o com ternura e carinho. dezenas de músculos se moveram e sua face e um sorriso surgiu. sentiu-se forte e com a certeza de que podia fazer de si uma vida plena e capaz de, como seus amigos efêmeros, realizar a fruição das necessidades de seu corpo e sua alma. preferiu, entretanto, seguir minando o mundo em que vive a partir da própria lógica desse mundo, sonhando com a próxima visita aos seus amigos pós-tempestade.

terça-feira, março 17, 2009

confissões de uma criança. ou quando me vestia de mulher

uma criança. aos 14. um diálogo. uma inquietação.
"mas se a pessoa coloca-se a dúvida se ela é ou não. ela já é", disse sua amiga.
a criança se cala. se põe a pensar. "não haveria outra forma de colocar a questão? seria essa a única maneira de compreender a situação? ou melhor, a única forma possível de imaginar essas relações? ser ou não ser? e se o caso, ou ainda, o ponto central do problema fosse outro? e se fosse do verbo estar?" os franceses não captariam logo a diferença. mas ela mudaria todo o jogo. se, ao invés, de 'ser' a pessoa 'estivesse' em tal ou tal posição, com tal ou tal disposição, de tal ou tal maneira, as coisas teriam aí uma outra perspectiva. os pontos de fuga poderiam multiplicar-se. e as centelhas espalhar-se-iam à deriva pelos espaços dos platôs, em constante interação. "a coisa não poderia ser tão fechada assim", ele pensava. se assim fosse, ele seria sempre um entra e sai de 'seres', que desapareceriam, ou cristarizariam em sua imagem, em seu corpo. não era isso que ele 'era'. se tivesse que usar o verbo ser, ele optaria por introduzí-lo em uma única proposição: sou uma constante etapa de 'estâncias', um colóquio infinito de 'estares' em relação aos territórios que ocupo, conquisto, reformo, transpasso, ignoro, desfaço, construo e abandono.
se 'tudo' tomasse parte desse infinito diálogo, logo teria de assumir que 'nada' faria parte dele, e tão logo pronunciasse essas palavras ele seria tudo. e o paradoxo 35 estaria, aí, em gestação.
mas a proposta não era ser tudo, ou nada. tampouco estar em tudo. mas, pelo contrário, estar em tudo, todo e qualquer lugar que lhe fosse possível. em lugares e espaços negados, desperdiçados e inutilizados. becos e matos despercebidos seriam alvo de seus estares. corpos nus e cobertos, fechados ou abertos, furados, vazados, coloridos, sujos ou diagramados estariam consigo, em si, e transpassando-o. corpos à deriva, como o seu, inertes, como de sua amiga, seriam as locações de suas estadias, de seus sonhos e planos, de suas experiências e ações. pouco importando a condição dos seres e como eles conduziriam suas vidas. o problema seria menos 'como definir-se nesse mundo desfigurado e opressor?', menos 'decida-se ou te devoro', menos 'é preciso acalmar o espírito nesses tempos sombrios e cruéis", do que "como construir múltiplas frentes de batalhas para a constante reestruturação das fronteiras e dos espaços estacionáveis e, por isso, rotativos. como construir platôs, salas de estares ambulantes, campos de descentralização, e, finalmente, uma ética plural?."

sábado, fevereiro 07, 2009

de carteiras e sapatos

pronto! já peguei o terno do meu irmão. o cabra viajou e deixou a nota da lavanderia para que eu pudesse pegar o dito. peguei. antes passei uma hora procurando minha carteira: 'onde estará aquela sacana? debaixo da cama, no sofá, dentro dos armários, em meio aos livros, no banheiro, junto às roupas para lavar, dentro da máquina?' onde estaria a coisa maldita que proteje documentos e papéis, mais papéis inúteis do que úteis, mas, por vezes tornados necessários. passados sessenta minutos, achei-a no primeiro local procurado. grande começo! hora de partir em busca do terno lavado a seco. foi um suor só. poderiam até me acusar de comparsa da chuva, com tanto líquido esguichando de meus poros. todo aquele sol quente na minha cabeça, que forçou meus aovéolos a trabalharem mais rápido, e meu sangue, concentrado em minhas pernas, a voltar rápido para o coração, faltando-me o ar. mas pronto, peguei, paguei. voltei enchardo de suor, mas o serviço miserável estava feito. agora só faltava provar. bom, a calça é apertada, mas é só para uma noite, a gente faz um sacrifício. o casaco até que ficou na pinta. menos mal. olho pro pé e pronto! vejo-o cabeludo, colorido, e branco. falta-me o sapato. 'caramba! o sapato! preveni-me, pedi a nota da lavanderia com antecedência, e esqueci da porra do sapato. tio, tu calça quanto?' 39. 'pô, não vai caber. será que rola algo na tua casa?' ele foi ver. fico desesperado vasculhando o guarda roupa. bom, claro que não há sapato no meu guarda-roupa. pra que diabos eu iria usar um sapato? "em dias como esses, idiota!" pô, eu sei, mas eu não uso, não tenho, não quero ter. na casa do meu tio fui recebido por latidos estridentes. como eu adoro cachorros.! o bicho ficou me enrrabando no meio da sala, fornicando com minha perna e cheirando minhas bolas. legal! daqui a pouco fico todo molhadinho! entro na casa e calço o primeiro pé do sapato! caramba! o troço ia fuder meu pé, mas mesmo assim obriguei-o a encaixar-se em minha chulapa. a dor foi grande, mas pelo menos eu tentei! é preciso várias tentativas se quiser arrumar um sapato emprestado. bom, depois dessa tromba d'água porreta, que está caindo agora, sairei para comprar. quem sabe, não rola uns baratos por conta da enchente? ou até mesmo alguns espalhados pela avenida! quem sabe?
ô menino, disse minha tia, tenta esse aqui! o troço entrou, e fez meus sustentáculos latejarem.
minha expressão foi justamente o contrário! 'claro que serviu tia! nossa! muito obrigado!' "tem certeza que não tá apertando?" 'claro! absoluta!' o que eu poderia fazer? era minha última chance antes de gastar uma nota com uma coisa que não iria usar! levantei-me e arrebentei meu côco no lustre baixo do quarto de meu primo. vi estrelas. legal! agora tinha dores em duas extremidades do corpo. uma para esquecer a outra! os chineses são bons nessas experiências! que idéia boa essa, não? "e a gravata,? leva essa aqui!" ela parecia seda de cuecas, como disse minha avó, mas era a melhor do mundo naquele momento. faltava-me achar o outro pé da minha meia. ótima busca. roupas para o chão, na cama, viradas e reviradas e nada. é hora de dobrar as peças espalhadas e encarar o sapato com meias grossas. mas será que minha vó não teria uma meia fina? tem meia-calça! disse ela. bom, pelo menos ninguém verá minhas pernas, não haverá muito mal. mas ela encontrou uma soquete antes de decidir-me pela LOBA. beleza, mais uma dívida: pagar a meia destruída da vovó. no fim, tudo certo. vestido, bati com os dedos com toda força no batente da porta, para esquecer-me do pé e segui para a festa. quinze minutos depois da entrada triunfal eu já estava sem paletó, gravata, sapato e com as mangas arriadas, sorrindo feliz para os noivos que passaram pedindo votos dos convidados. valeu o esforço: a noite foi boa junto à minha amada, especialmente após a chuva que tomamos na saída da festa. de uma coisa eu sei: tenho que pensar melhor sobre a idéia de comprar um sapato.

terça-feira, janeiro 20, 2009

pirofagiando em segredo. ou. tão distante da tabacaria que parece próximo dum platô.

hey, eu vou dizer o que eu penso.
mas não pedi sua opinião, jorge.
direi mesmo assim. eu acho isso tudo uma bela merda. uma bela montanha de merda mole.
droga, meu cigarro apagou e eu tenho que ficar te ouvindo dizer besteiras, jorge!
é sério, cara! toda essa baboseira de esperança de um mundo melhor com um presidente negro. o porra do cara é presidente, cê entendeu? presidente. que porra vai mudar, cara?
jorge, as coisas não são assim, as pessoas precisam dessa merda toda. senão, como elas vão sair à noite para pagar pra caras e mulheres lhes darem aquela chupada, que seus maridos e esposas não podem dar?
você é um estúpido, cara! ninguém precisa de presidente nenhum. nem de chupada gostosa. essa merda toda é uma bela sacanagem sustentada por seu alcoolismo.
eu não coloco sua mãe no meio, então respeite minha relação com o álcool, jorge.
ok, tu fica aí enchendo a cabeça de cachaça, enquanto teus filhos comem carangueiros podres que se alimentam da merda produzida na cidade. enquanto eu fico aqui, provando para o mundo que eu não preciso de presidente de porra nenhuma.
jorge, tu tá berrando no meu ouvido! eu tô do teu lado, sacana!
isso! fica fazendo posinha de delicado, seu merda!
caralho, jorge, a rua inteira tá querendo te dar um sopapo!
eu pego é todo mundo no bondage, cara! faço uns enemas e tá limpo!
não comece com suas coisas de tortura!
tortura? porra, os cara te fazem pagar um imposto sobre a tua casa, uma invenção mais idiota e antiga, e tu vem falar que gozar com um pouco de sangue é tortura? tu trabalha como a velha a fiar, sem parar para pensar no que fazes de ti, e dar umazinha que é tortura?
não irrita, jorge, eu tô sem saco, hoje!
porra! tu tá nessa de virar eunuco e nem me chama pra festa?! sacanagem, cara!
jorge, eu te soco hoje!
tu tem que parar de ser um cagalhão. tu fica aí sentado, sem fazer nada, enchendo a cara.
ah, vá se fuder!
é sério, cara! eu mesmo tô aí, tô aqui, tô até na internet! eu faço é muita coisa, cara! fico limpando cadeira com o cu, não.! vou pra luta é armado de palavras.
como que é isso?
bom, os caras começam a me bater e eu fico lá recitando Fernando Pessoa. os cara param de me bater para ouvir os poemas do cara. pô Fernando Pessoa é o cara!
e tu lá sabe um poema de Fernando Pessoa?
saber eu não sei não, mas decorei um, quer ver? : "eu sô é nada, nunca vô sê é nada, não posso querer sê é nada. da parte disso, tenho todo sonho do mundo. Hoje eu tô abobado, como que pensei e achei e esqueci. hoje eu tô é dividido entre a lealdade que devo à tabacaria da esquina, como coisa que é real de fora, e ao sentimendo de que tudo é sonho, como coisa que é real de dentro."
ô jorge, pára, cara!
mas eu tava terminando! ele é grande, mas eu decorei tudo. e quando eu falo as pessoas param de brigar e choram! primeiro elas riem, depois você vê toda a lágrima saindo dos olhos frios e vazios delas.
cê fala essas coisas pra polícia e ela não te bate mais, não?
não! eles ficam sensíveis! imagina, um revolucionário que não pega em armas e sabe de cor uma poesia de Fernando Pessoa!
cara, eu acho que tu precisa é parar com essa birita.
eu não bebo há três dias.
e esse cheiro de cachaça, jorge?
é que fez três dias e eu não aguentei. tomei umas. mas isso não faz de mim um mentiroso, cara! isso tudo é um monte de merda fedida e molinha. o pessoal lá de gaza não ganha muita coisa com esse presidente, não. aliás, nem tu. a não ser esperança de merda, de comprar mais merda.
jorge, mas tu tá um pessimista idiota, hein? que que tu sabe de gaza?
tô pessimista, não. eu creio em coisas boas, cara! essa é a diferença. eu penso em coisas boas. não fico lamentando: oh! meu querido governo cobra de mim e não me dá nada. não brinco com essa merda. minha merda é outra, cara. existe uma multiplicidade de merdas a serem formuladas. um sem-número de singularidades múltiplas. eu faço minha própria merda, cara.
ainda bem, né jorge?
é sério! eu corro atrás, e tudo mais.
mas tu chegou onde está como?
não venha me dizer que eu devo minha vida ao governo, cara! minha vida eu devo aos meus. aos que a fizeram ao meu lado. àqueles que estiveram juntos na minha caminhada, e não à essa merda toda.
de alguma forma você está aí por conta dessa merda toda, jorge.
eu sei.
então não sacaneia, jorge.
mas essa merda toda não precisa ser a merda que eu vou carregar até o fim da vida. então eu faço minha própria merda, cara! meu próprio caminho.
tu é um individualista doidão, jorge!
não! é aí que tu se engana, cara! eu sou eu, claro! mas eu também! sacou? também! sou muito mais. e minha merda é feita disso tudo!
tu tá meio esquisito hoje, jorge.
é que vi um filme estranho.
é mesmo? tu vendo filmes?
não encha o saco, cara. filmes também são essa merda toda, só que mais cheirosos. aliás, a coisa mais legal que tem por aí é a música, mas ela tá cheirando como você, cara!
eu vou dizer o que eu penso, jorge: nisso você tem um pouco de razão.
então, vê se pára de ficar sentado aí, seu merdinha. eu já estou por aí:
"e o universo me fez de novo sem ideal, sem esperança, e o dono da tabacaria olhô pra mim e sorriu."...