às vezes arrumo uma pensação longa e dolorida. que fica aqui transitando por entre diferentes axônios e dentritos. velejando de sinapse em sinapse por todo meu corpo fazendo-me ora sentir dor, ora sono. por vezes ela esmaga, comprime a massa cinzenta, o que me deixa atordoado. é tanta pressão que o olho parece que vai pular pra fora. chega a ser engraçado a percepção de tal fato. engraçado e triste. mas o tomo como provocações. tal como as que costumo fazer. aliás, o que venho fazendo é provocar a mim mesmo. ou antes, meu corpo, ou minha matéria completa: corpo e alma. ambos, desde o início, criaram-se, estimularam-se, reformularam-se, cortaram-se, fundiram-se e se fizeram crescer. claro que não na nessa ordem, terminando numa espécie de topo ou fim da linha. a relação entre um e outro é bem mais dinâmica. diria que quase como que irmãos siameses capazes de se desenvolver autonomamente, diferentemente, mas sempre conectados, de alguma forma - qualquer que seja - sempre juntos, influenciando-se. mas mais do que serem siameses, corpo e alma tornaram-se siameses. em determinado ponto do desenvolvimento moral ambos tomaram forma, fundiram-se e tornaram-se irmãos. antes, talvez, o que existira era um monte de massa amorfa em movimento. o fato é, que além de serem siameses - que é uma definição porca, mas o mais próximo do que ora apresento - corpo e alma são relações de mutualismo, predatismo, parasitismo, colonialismo, comensalismo, amensalismo, sinfilia e canibalismo. relações complexas de níveis vários que interagem entre si. e como disse, venho provocando tudo isso: corpo e alma provocando corpo e alma. tudo transforma-se em uma arena de tolos, onde fascismos digladiam entre si, cortando suas cabeças e as dos libertarismos. uma peça de teatro onde sonhos se realizam, se concretizam. como uma sala de cinema onde risos gargalham a morte de 'zés' e choram a morte de cães. uma completa balbúrdia bem ordenada. quase sempre as polaridades ficam evidentes, vez ou outra a coisa explode e todo o campo magnético torna-se neutro por instantes seculares. quando percebo que a pensação dói demais, e que não dá para ficar na cama, estimulo as positividades e as negatividades, com intuito de construir algo - lembrando que a desconstrução é uma forma de construir - libertador, construir outras fronteiras. corpo e alma perguntam-se: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? o que queremos para nós? numa tentativa de sair do isolacionismo cotidiano, corpo e alma procuram inserir tais questionamentos para o âmbito do coletivo. o que estamos ajudando a fazer do(s) que está(ão) ao nosso redor? ambos buscam, em pequenos atos, caminhos possíveis para re-sentir os benefícios de uma outra pensação, profunda, mas leve e serena. e que pode ser longa, se a matéria completa sempre for capaz de voltar a si mesma propondo-se re-formular esses problemas. abrindo-se para a dor, aprendendo a dialogar com ela, estabelecendo uma relação de força na qual ela não pode sair vitoriosa sob pretexto de redenção do corpo e alma. pois se assim for, as embarcações da pensação longa e dolorida irão tomar como posse corpo e alma por inteiro, e isso não pode ser aceitável.
quarta-feira, abril 29, 2009
quinta-feira, abril 09, 2009
de tempestades e clarões
uma tarde comum. ela adentrara a mata ainda existente em meio aos prédios escolares do pequeno campus universitário, como usualmente fazia. cortar caminho, por vezes, é mais interessante. ainda mais quando o atalho é constituído por sombras de árvores e por cheiros de ares não-urbanos. o dia brilhava. mas haviam nuvens cinzas querendo compartilhar os espaços disponíveis naquela região atmosférica. elas concentravam-se logo atrás da mata. articulando-se. dialogando sobre a melhor hora de esvaziarem-se. o debate aberto entre iguais logo virou uma ensurdecedora campanha eleitoral. cada hora uma falava mais alto que a outra. e tão logo isso aconteceu, duas grandes nuvens, para se fazerem ouvir, invocaram os maiores acessores daquele tempo: os ventos. de um lado havia um vento defendendo a calmaria e a dispersão no espaço de todas as nuvens, multiplicando as possibilidades de uma maior distribuição do espaço supralunar: questão de dissolução de fronteiras. de outro a defesa era de uma rápida mobilização e concentração de forças para melhor conquistar o pequeno espaço em disputa. as pequenas nuvens se associariam às grandes formando uma imensa e única massa capaz de dominar toda a região: questão de fortalecimento das fronteiras.
ao entrar na mata essas contendas começaram a dar as caras. e a força bruta havia acabado de ser utilizada. a mudança foi rápida e brusca. ela já estava dentro da mata e a chuva desabou sobre as árvores que lhe davam sombra. apressou o passo. começou a correr. mais adiante um raio surgiu clareando tudo em sua volta. de forma que nada mais podia ver. ela caiu. estava sem sentidos. ao se levantar a chuva já havia ido embora. mas deixou suas marcas no solo. seguiu adiante, acreditando já ter perdido seus compromissos. caminhou sempre em frente. cinco minutos se passaram e percebeu que havia algo errado. o caminho não acabava. e nada lhe parecia mais como antes. correu. sempre nos limites do caminho. mas de nada adiantava. ela sentia-se vigiada. percebeu que outros seres também corriam paralelamente à sua linha de corrida. de repente escorregou e desceu barranco abaixo.
sua queda espantou um grupo de amigos que se concentravam ao redor de um banquete. as pessoas voltaram curiosas para ver aquele corpo caído. gritaram ao se olharem! mais correria. agora dispersa e sem direção predeterminada. o tropeço veio rápido. ela não estava acostumada a correr em matas fechadas. pensou consigo que estava ficando louca. "o que tem demais encontrar um bando de jovens estranhamente vestidos, fazendo um pic nic? eles deviam estar bolando algum, ou coisa parecida". riu de si. levantou e tentou encontrar a antiga trilha.
algum tempo depois ela cansou-se e sentou sua bunda num galho caído. mas alguém a havia seguido. tentou uma aproximação amigável. ela se armou! a comunicação foi difícil! os dois ficavam grunindo palavras incompreensíveis um para o outro. acabaram por manter uma relação por gestos. demorou muito para que esses gestos fizessem um mínimo de sentido. se ela não percebesse na face do outro que sua vontade era um diálogo, dificilmente as coisas se dariam como se deram. ambos acharam muito estranho encontrar com uma pessoa de outra língua. logo ali, perto de suas atividades cotidianas. "deve ser visitante de outro país", pensaram. mas logo ela percebeu que estava em outro lugar. que a mata era maior do que o normal, e que não era possível encontrar todos os aparatos técnicos da comunidade de seu novo interlocutor tão porto do campus. não sabia se estava sonhando, se havia enlouquecido, se havia dormido tanto a ponto de não ver o tempo passar, ou se o passado viera até ela e a tinha engolido, envolvendo-a em sua totatlidade.
reconhecendo certos sinais, acreditou ainda estar em um espaço de tempo relativamente perto de sua vida pré-tempestade. mas ficou intrigada pois não via carros destruídos, ou prédios altos. tampouco uma organização comparada às sociedades que já estudara. nunca tinha ouvido falar sobre alguma sociedade em que a coletividade e a individualidade andavam lado a lado. em que as decisões eram tomadas em conjunto e por quem quisesse tomar parte na grande assembléia que se dispunha a resolver seus problemas. ela chegou a falar certos conceitos que tinha conhecimento, mas nada conseguiu tirar das reações dos seus novos companheiros. a organização espacial daquela sociedade era algo que nunca havia pensado. haviam famílias enormes, mas cujo papel centralizador não era o pai ou a mãe, mas a própria solidariedade. a produção alimentícia era coletiva e tomava uma hora diária de cada um. mas esse "tempo de horas" não existia por lá. o tempo era medido sob outra lógica. existia o tempo de trabalho: contado pelo cansaço, suor e necessidade. o cálculo dessas três variáveis geralmente correspondia a uma hora diária do tempo pré-tempestade. as outras partes dos dias e noites eram aproveitadas pela livre vontade de criação: as pessoas expressavam seus sentimentos e desejos com esculturas, música, poesias e outras escrituras. os problemas de ordem organizacional tinham sua vez em reuniões para resolver contendas como: conflitos, escassez de comida, de material de sociabilidade, de utilização do espaço (que era sempre público, nunca privado. o que quer dizer que não pertencia nem a um estado, nem a qualquer pessoa comum). a festa era uma prática cotidiana. por isso a produção de pratos e bebidas tomavam sempre um tempo maior e mais coletivo. o revezamento no fogão era constante. assim, todos brincavam e produziam materiais para a brincadeira.
sua chegada, apesar de levantar uma pequena crise sobre a organização interna, foi vista com bons olhos. os participantes da assembléia se viram na necessidade de realizar uma reflexão sobre a questão da comunicação entre diferentes línguas, mas nada que não tenha sido rapidamente colocado em prática. as crises eram frequentes e as soluções, sempre sensatas e sugeridas no seio do debate, eram logo colocadas em prática. assim, ela foi acolhida com alegria e solidariedade. convidaram-na para participar da preparação da festa noturna: colheita de hortaliças, fermentação do álcool e invenção de danças e performances corporais.
ela ficou maravilhada! acabou entrando em transe durante a festa. nunca havia sentido tanta felicidade, tanto prazer, tanto êxtase em um só momento. seu corpo estava lado a lado de sua alma. e nada parecia tão real e tão mágico ao mesmo tempo. a produção de algo tão prazeroso a fez sentir que aquela sociedade buscava colocar em prática a vida plena da alma e do corpo. ela, então, caiu num amontoado macio de pano que era usado para os repousos. de olhos fechados ainda podia sentir os ritmos dos prazeres da festa. acordou com uma chuva que caia calmamente, mas firme. levantou-se e se percebeu no mesmo caminho que usava para atravessar a mata. levantou-se e compreendeu que estivera ali desde o momento do clarão. olhou ao seu redor e percebeu que havia uma árvore de porte médio com vestígios de fogo. "havia sonhado", pensou. seguiu até o fim da trilha, olhou para trás e sentiu um aperto e seu peito. angustiada, colocou a mão em seu colo e sentiu um pingente, que antes não existia ali. olhou-o com ternura e carinho. dezenas de músculos se moveram e sua face e um sorriso surgiu. sentiu-se forte e com a certeza de que podia fazer de si uma vida plena e capaz de, como seus amigos efêmeros, realizar a fruição das necessidades de seu corpo e sua alma. preferiu, entretanto, seguir minando o mundo em que vive a partir da própria lógica desse mundo, sonhando com a próxima visita aos seus amigos pós-tempestade.
ao entrar na mata essas contendas começaram a dar as caras. e a força bruta havia acabado de ser utilizada. a mudança foi rápida e brusca. ela já estava dentro da mata e a chuva desabou sobre as árvores que lhe davam sombra. apressou o passo. começou a correr. mais adiante um raio surgiu clareando tudo em sua volta. de forma que nada mais podia ver. ela caiu. estava sem sentidos. ao se levantar a chuva já havia ido embora. mas deixou suas marcas no solo. seguiu adiante, acreditando já ter perdido seus compromissos. caminhou sempre em frente. cinco minutos se passaram e percebeu que havia algo errado. o caminho não acabava. e nada lhe parecia mais como antes. correu. sempre nos limites do caminho. mas de nada adiantava. ela sentia-se vigiada. percebeu que outros seres também corriam paralelamente à sua linha de corrida. de repente escorregou e desceu barranco abaixo.
sua queda espantou um grupo de amigos que se concentravam ao redor de um banquete. as pessoas voltaram curiosas para ver aquele corpo caído. gritaram ao se olharem! mais correria. agora dispersa e sem direção predeterminada. o tropeço veio rápido. ela não estava acostumada a correr em matas fechadas. pensou consigo que estava ficando louca. "o que tem demais encontrar um bando de jovens estranhamente vestidos, fazendo um pic nic? eles deviam estar bolando algum, ou coisa parecida". riu de si. levantou e tentou encontrar a antiga trilha.
algum tempo depois ela cansou-se e sentou sua bunda num galho caído. mas alguém a havia seguido. tentou uma aproximação amigável. ela se armou! a comunicação foi difícil! os dois ficavam grunindo palavras incompreensíveis um para o outro. acabaram por manter uma relação por gestos. demorou muito para que esses gestos fizessem um mínimo de sentido. se ela não percebesse na face do outro que sua vontade era um diálogo, dificilmente as coisas se dariam como se deram. ambos acharam muito estranho encontrar com uma pessoa de outra língua. logo ali, perto de suas atividades cotidianas. "deve ser visitante de outro país", pensaram. mas logo ela percebeu que estava em outro lugar. que a mata era maior do que o normal, e que não era possível encontrar todos os aparatos técnicos da comunidade de seu novo interlocutor tão porto do campus. não sabia se estava sonhando, se havia enlouquecido, se havia dormido tanto a ponto de não ver o tempo passar, ou se o passado viera até ela e a tinha engolido, envolvendo-a em sua totatlidade.
reconhecendo certos sinais, acreditou ainda estar em um espaço de tempo relativamente perto de sua vida pré-tempestade. mas ficou intrigada pois não via carros destruídos, ou prédios altos. tampouco uma organização comparada às sociedades que já estudara. nunca tinha ouvido falar sobre alguma sociedade em que a coletividade e a individualidade andavam lado a lado. em que as decisões eram tomadas em conjunto e por quem quisesse tomar parte na grande assembléia que se dispunha a resolver seus problemas. ela chegou a falar certos conceitos que tinha conhecimento, mas nada conseguiu tirar das reações dos seus novos companheiros. a organização espacial daquela sociedade era algo que nunca havia pensado. haviam famílias enormes, mas cujo papel centralizador não era o pai ou a mãe, mas a própria solidariedade. a produção alimentícia era coletiva e tomava uma hora diária de cada um. mas esse "tempo de horas" não existia por lá. o tempo era medido sob outra lógica. existia o tempo de trabalho: contado pelo cansaço, suor e necessidade. o cálculo dessas três variáveis geralmente correspondia a uma hora diária do tempo pré-tempestade. as outras partes dos dias e noites eram aproveitadas pela livre vontade de criação: as pessoas expressavam seus sentimentos e desejos com esculturas, música, poesias e outras escrituras. os problemas de ordem organizacional tinham sua vez em reuniões para resolver contendas como: conflitos, escassez de comida, de material de sociabilidade, de utilização do espaço (que era sempre público, nunca privado. o que quer dizer que não pertencia nem a um estado, nem a qualquer pessoa comum). a festa era uma prática cotidiana. por isso a produção de pratos e bebidas tomavam sempre um tempo maior e mais coletivo. o revezamento no fogão era constante. assim, todos brincavam e produziam materiais para a brincadeira.
sua chegada, apesar de levantar uma pequena crise sobre a organização interna, foi vista com bons olhos. os participantes da assembléia se viram na necessidade de realizar uma reflexão sobre a questão da comunicação entre diferentes línguas, mas nada que não tenha sido rapidamente colocado em prática. as crises eram frequentes e as soluções, sempre sensatas e sugeridas no seio do debate, eram logo colocadas em prática. assim, ela foi acolhida com alegria e solidariedade. convidaram-na para participar da preparação da festa noturna: colheita de hortaliças, fermentação do álcool e invenção de danças e performances corporais.
ela ficou maravilhada! acabou entrando em transe durante a festa. nunca havia sentido tanta felicidade, tanto prazer, tanto êxtase em um só momento. seu corpo estava lado a lado de sua alma. e nada parecia tão real e tão mágico ao mesmo tempo. a produção de algo tão prazeroso a fez sentir que aquela sociedade buscava colocar em prática a vida plena da alma e do corpo. ela, então, caiu num amontoado macio de pano que era usado para os repousos. de olhos fechados ainda podia sentir os ritmos dos prazeres da festa. acordou com uma chuva que caia calmamente, mas firme. levantou-se e se percebeu no mesmo caminho que usava para atravessar a mata. levantou-se e compreendeu que estivera ali desde o momento do clarão. olhou ao seu redor e percebeu que havia uma árvore de porte médio com vestígios de fogo. "havia sonhado", pensou. seguiu até o fim da trilha, olhou para trás e sentiu um aperto e seu peito. angustiada, colocou a mão em seu colo e sentiu um pingente, que antes não existia ali. olhou-o com ternura e carinho. dezenas de músculos se moveram e sua face e um sorriso surgiu. sentiu-se forte e com a certeza de que podia fazer de si uma vida plena e capaz de, como seus amigos efêmeros, realizar a fruição das necessidades de seu corpo e sua alma. preferiu, entretanto, seguir minando o mundo em que vive a partir da própria lógica desse mundo, sonhando com a próxima visita aos seus amigos pós-tempestade.
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